Desde a cidade, desde a maré
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Desde a cidade, desde a maré…

Artigo por
Cêça Guimaraens
Arquiteta e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O tema desta breve notícia é um trabalho que foi realizado com a equipe do Grupo de Estudos de Arquitetura de Museus, composto de estudantes de graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ no início da década de 2010. A sobreposição de representações dos diferentes tempos arquitetônicos e urbanísticos do lugar, a análise comparativa de configurações urbanas e estilísticas, e as propostas de renovação de exposições foram os principais resultados dos encontros dos estudantes no Museu da Maré do Rio de Janeiro. Tendo em vista um recorte hoje mais apropriado, o texto registra alguns dos apontamentos elaborados para os estudos teóricos do projeto da exposição permanente desse museu. O propósito de elaborar análises comparativas dos museus do estado do Rio de Janeiro, gerando, em especial, reflexões sobre a participação das comunidades nas atividades museológicas foi a base das leituras então realizadas.

Museus, pra quê? pra quem???

Objetos, exposições e monumentos se integram de maneira complexa às diferentes “arquiteturas” e ambiências urbanas, tanto na condição de continente quanto de conteúdo, para interpretar, transformar e, ao mesmo tempo, recriar a permanência das memórias das sociedades humanas. Nesse contexto e na medida em que são representações de exceção dos patrimônios das cidades, os museus contribuiriam para a democratização da cultura e para a promoção do conhecimento. Lugares constituintes da paisagem cultural, os museus contêm as referências espaciais de lembranças e de esquecimentos significativos. A situação físico-geográfica e a condição simbólica dos museus afirmaram o reconhecimento multicultural por meio da ampliação dos conceitos e dos processos museológicos. Dessa perspectiva, estejam situados em áreas centrais ou em bairros periféricos e favelas, os museus configuraram o real imaginário das populações urbanas. 

A diversidade de localizações e ações demonstra que, desde os gabinetes das maravilhas e jardins pitorescos, os museus integram e intrigam os interesses dos artistas e das comunidades. Por outro lado, na contemporaneidade, o significado simbólico do lugar central e a decorrente centralidade física dos museus tradicionais constituem problemas formidáveis face ao amplo espectro da função social de tais instituições. Na atualidade, corações e mentes admitem que não apenas o fascínio da invenção da beleza e a retórica da estética produziram territórios de superação voltados à harmonia das diferenças. Portanto, as possibilidades de reconhecimento dos patrimônios comuns e incomuns geraram novos aportes e releituras interpretativas e comunicativas dos acervos.

Na leitura dos textos do museólogo Mário Chagas[1], observa-se que, “às instituições de memória, e de modo particular aos museus, é frequentemente atribuída a função de casas de guarda do tesouro. Mas, se o tesouro foi perdido o que elas guardam? E se guardam de fato um tesouro, que tesouro é esse?” O mesmo autor, baseado em outros estudiosos, afirma que, para as instituições museais, quando se ultrapassa o contexto do edifício e do território: “não há uma preocupação patrimonial no sentido de proteção do passado, mas sim um interesse na dinâmica da vida. Em outros termos: o interesse no patrimônio não se justifica pelo vínculo com o passado seja ele qual for, mas sim pela sua conexão com os problemas fragmentados da atualidade, a vida dos seres humanos em relação com outros seres, coisas, palavras, sentimentos e ideias. Assim, é no termo população, com suas múltiplas identidades, que se encontra, a meu ver, o desafio básico do museu.”

E, ainda com viés sociopolítico, Chagas ensina: “O vocábulo museu, como se sabe, tem origem na Grécia, no Templo das Musas (Museión). As musas, por seu turno, foram geradas a partir da união mítica celebrada entre Zeus (identificado com o poder) e Mnemósine (identificada com a memória). O retorno à origem do termo museu não tem nada de novo. Diversos textos trazem essa referência. Avançando um pouco pode-se reconhecer, ao lado de Pierre Nora (1984), que os museus vinculados às musas por herança materna (matrimônio) são “lugares de memória”; mas por herança paterna (patrimônio) são configurações e dispositivos de poder. Assim, os museus são a um só tempo: herdeiros de memória e de poder. Estes dois conceitos estão permanentemente articulados nas instituições museológicas.”

A missão do Museu da Maré é romper e ultrapassar a versão oficial da história da localidade, fato este que limita as representações históricas e afetivas dos habitantes. Em razão disso e na condição de iniciativa pioneira no cenário cultural da cidade, o Museu da Maré ampliou o conceito museológico, retirando-o das restrições impostas por grupos intelectualizados e economicamente dominantes. O território e a essência da origem da comunidade são lugares de memória e, por isso, nada mais significativo do que a leitura museográfica baseada na vivência e percepção dos habitantes do lugar. Portanto, o museu é um local de imersão no passado e de olhar para o futuro, em permanente reflexão sobre as referências da comunidade, em suas condições de identidade e de diversidade culturais, sociais e territoriais. Nesse sentido, a atuação do Museu da Maré tem sido significativa. 

Fundado em 8 de maio de 2006, o museu foi constituído a partir do desejo dos moradores de possuírem o próprio lugar de memória. Cláudia Rose Ribeiro da Silva e Miriane da Costa Peregrino (2014) registram que as palafitas, tipo de habitação construída sobre as águas que predominavam na ocupação da área, foram removidas na década de 1980, tendo o bairro da Maré sido criado oficialmente em 1994. Para essas autoras, a identificação com a formação precária original, entretanto, dificulta o reconhecimento do lugar pelos diversos grupos que hoje o compõem. Então, elas afirmam que: “A subjetividade, as memórias e o cotidiano dos moradores da região são marcados por esse estigma, que também permanece profundamente arraigado nas pessoas que vivem na cidade do Rio e em outras no país.” [2]

Construído dentro de uma antiga fábrica de transportes marítimos, o museu sobrevive com o risco de ser despejado. A luta pela permanência e continuidade do trabalho deste pioneiro é exemplo a ser seguido na preservação da história de todas as comunidades na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, em acordo com o website que mantém, o Museu da Maré “envolve vários núcleos de ação que têm por centro a exposição permanente, mas que se desdobram em outras ações como a organização de acervo documental; a realização de pesquisa de história oral; o desenvolvimento de atividades lúdicas e educativas, como é o caso do grupo de contadores de histórias; além da realização de outros eventos na forma de exposições itinerantes, seminários, oficinas e produção de material temático.”[3]

Fotografias e colagens de Macarena Cares e Nicolás Moya, 2013.

A respeito da fundação do museu, o senhor Clóvis, ex-presidente do trecho da Maré denominado Baixa do Sapateiro, afirmou que: “Nós lutamos muito para conseguir água encanada, asfalto nas ruas, creches, escolas, postos de saúde … Agora só faltava mesmo um museu!”[4]

Em tempos mais recentes, o professor Boaventura de Souza Santos assim expressou a sua opinião sobre o Museu da Maré: “Um dos mais brilhantes exemplos da museologia social e transformadora. Visitá-lo é uma experiência que te marca para a vida.”[5] 

Andréa Rose Ribeiro da Silva, por sua vez, disse que: “Visitar o Museu da Maré é sempre uma experiência nova a cada visita… sempre que tenho oportunidade visito o museu, pois sei que a visita não será a mesma da última vez. Sempre tem um detalhe que observo pela primeira vez ou que observo com outro olhar. O Museu da Maré tem a habilidade de nos fazer visitar um novo museu no mesmo lugar a cada visita. E sem falar das recordações que, inevitavelmente, eu revivo dentro do espaço do museu. É uma experiência que todo morador da Maré tem que ter e quem não é da Maré, também. Se você é da Maré, aconselho que faça a visita acompanhado de amigos de infância ou adolescência, é sempre muito bom reviver tudo junto com eles.”[6]

Para dar sequência às ideias

A democratização dos museus transcorre em desdobramentos de espaços sociais e físicos difusos, o que permite novos recortes patrimoniais e diálogos expressivos da diversidade sociológica das instituições e das cidades. Neste sentido, o desenvolvimento das formas de pensar a Cultura é fundamental para a verificação do papel dos agentes culturais e institucionais na elaboração das políticas de Estado para o setor museológico. Esses processos estão a exigir o uso “franco” das novas técnicas e a aplicação de métodos de projeto de gestão alternativos, abertos e flexíveis. A participação de todos, ou seja, a inclusão social daí decorrente poderá gerar perspectivas de autofinanciamento e reciprocidade funcional, caso sejam produzidas, ao mesmo tempo, ações globais e comunitárias.

O projeto de autonomia de uma sociedade heterônoma consideraria que uma rede de museus estabelece um cotidiano enriquecedor para todos os habitantes cujas procedências físicas e culturais são diversas. Desse ponto de vista, os museus de comunidades seriam espaços de memória adequados à implementação de ações afirmativas dos direitos identitários e à socialização das responsabilidades patrimoniais comuns a todos os grupos da sociedade. Em semelhante espectro, ao observar que a Internet é uma forma de comunicação que estabelece uma visão mais global da missão e audiência dos museus, verifica-se a potência da rede virtual para ampliar o conhecimento que esses centros de cultura promovem, incluindo-se, neste escopo, o papel dessas instituições no campo da preservação patrimonial.

Na Maré, o principal sentido da criação do espaço museológico foi a condição de ponto de encontro. Encontro daqueles que, na diferença, se fazem iguais. Afinal, a principal característica de toda cidade é o fato de o espaço ser um agente propiciador do entrelaçamento das diferenças e das semelhanças, permitindo a constituição de identidades plurais. Dessa perspectiva, os modelos de museus de favela, ecomuseus, percursos e rotas culturais devem privilegiar os recortes patrimoniais específicos. E, no caso da formação de museus “em rede”, impulsionar as ações e o gerenciamento da informação de modo virtual e real, anunciando, nesse hibridismo comunicativo, que os lugares de memória são configurados em função dos ambientes e dos problemas sociais das populações e respectivos patrimônios e territórios.

Referências:

[1] CHAGAS, Mário. “Memória e Poder: contribuição para a teoria e a prática nos ecomuseus” . (Mimeo), maio 2000.
[2] RIBEIRO DA SILVA, Claudia Rose e PEREGRINO, Miriane da Costa. “Experiências de ações educativo-comunitárias no Museu da Maré”. In REVISTA História Hoje, v. 3, no 6, p.155-180, 2014.
[3] Ver https://www.museudamare.org/ .
[4] Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Portugal. In https://www.museudamare.org/ acessado em 15 de agosto de 2020.
[5] In https://www.museudamare.org/ acessado em 15 de agosto de 2020.
[6] In https://www.museudamare.org/ acessado em 15 de agosto de 2020.

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